A falsa associação entre "homofobia" e sexualidade reprimida
No cenário político brasileiro, marcado por discursos de ódio e polarização, um episódio recente reacendeu debates sobre as raízes da intolerância. Em 22 de janeiro de 2025, tweets antigos do deputado federal Nikolas Ferreira, conhecido por declarações transmisíacas, misóginas, racistas e capacitistas, viralizaram no X (antigo Twitter).
A reação de parte des usuáries, porém, seguiu um roteiro perigoso: associar sua retórica a uma suposta "'homossexualidade' reprimida". À primeira vista, a crítica parece ácida e até irônica, mas essa narrativa — repetida como clichê em discussões online — carrega dois gumes envenenados.
A primeira é a perpetuação de um estereótipo patologizante, que reduz questões dissidentes a sintomas de distúrbio ou hipocrisia. A segunda, ainda mais grave, é o apagamento do verdadeiro problema: a violência estrutural contra pessoas da comunidade LGBTQIAPN+, negras e pessoas com deficiência, grupos sistematicamente atacados diariamente por figuras como Ferreira.
Ao focar em supostos "traumas pessoais" do parlamentar, a discussão desvia o olhar do que realmente importa — o impacto material de sua retórica nas vidas marginalizadas. Este breve texto propõe desmontar essa lógica duplamente tóxica, mostrando por que psicologizar o ódio é uma forma sutil de compactuar com ele.
A diferença entre homofobia e homomisia
Antes de seguirmos, é importante corrigir um erro comum: a escolha entre "homofobia" e "homomisia" não é apenas uma questão de precisão linguística. O sufixo "-fobia" se refere ao medo patológico, algo que, teoricamente, precisa de compreensão ou tratamento. Já "-misia" (do grego misein, que significa "odiar") é mais direto: significa ódio, uma aversão que se disfarça de "valores tradicionais", "proteção à família" ou "princípios religiosos".
A falácia da sexualidade reprimida
Associar a homomisia à sexualidade reprimida é uma falácia que desvia a responsabilidade dos indivíduos homomisíacos. Afirmar que pessoas homomisíacas são simplesmente "gays enrustidas" desloca a questão para o campo pessoal de pessoas gays, sugerindo que o problema reside nas experiências e atitudes dessas pessoas, e não na sociedade como um todo. Essa perspectiva, que tenta individualizar um fenômeno social coletivo, não apenas distorce a realidade, mas também desvia o foco da verdadeira raiz do problema: a estrutura social que perpetua o preconceito.
A homomisia não é um distúrbio psicológico ou uma falha individual, mas uma construção histórica profundamente enraizada nas normas culturais. As leis homomisíacas, a educação excludente e uma cidadania incompleta para pessoas LGBTQIAPN+ não são apenas um reflexo da suposta "repressão pessoal", mas sim evidências de uma cultura que, desde suas bases, marginaliza e vilipendia a diversidade. Não se trata de um problema causado por "gays enrustides" que atacam a si mesmes, mas de um preconceito enraizado. Negar toda violência cotidiana é irresponsável, contraproducente e desonesto.
Essa falácia persiste porque transforma um fenômeno social complexo em uma questão individual, ignorando as condições culturais, políticas e históricas que o sustentam em uma escala global. Quando se afirma que a homomisia é apenas uma manifestação de repressão pessoal, deixa-se de lado a análise crítica das estruturas que a perpetuam.
Essa falácia é similar ao raciocínio falho que sugere que "há muitas mulheres machistas" ou que "pessoas negras podem ser racistas". Esse tipo de pensamento, além de errôneo, exime a sociedade da responsabilidade que tem na perpetuação dessas desigualdades, tratando problemas estruturais como se fossem falhas individuais.
Se a homomisia fosse apenas um sintoma de repressão pessoal, bastaria esperar que todes es queermisíaques "se descobrissem" e o problema estaria resolvido. Só que a realidade é bem mais brutal. A problemática não persiste por falta de autoconhecimento dos indivíduos, mas porque há uma estrutura inteira sustentando seu funcionamento, com poder, dinheiro e interesses em jogo. Esses interesses são alimentados por discursos que naturalizam isso e pela disseminação de uma ideologia que lucra com a divisão e violência.
Nikolas Ferreira, por exemplo, não é uma anomalia, não é um "gay reprimido", nem uma exceção isolada. Ele é um sintoma de algo muito maior: uma estrutura política e social que se beneficia da disseminação do preconceito e da intolerância. Ele não é um "gay enrustido", mas sim um representante de um sistema que, ao incitar ódio, mantém sua própria influência política e seu poder sobre as massas. A ideia de que figuras como ele seriam "gays enrustides" é uma estratégia de desvio que foca no indivíduo, quando a verdadeira questão está nas leis, nas políticas e nas normas que sustentam uma cultura de cis/heteronormatividade generalizada.
Ao focarmos em especulações sobre a vida íntima de figuras públicas como ele, é como se estivessemos discutindo a cor da fumaça enquanto a casa está em chamas, e desviamos nossa atenção do verdadeiro problema: um sistema que favorece o discurso de ódio, que nega direitos e promove a violência. A verdadeira luta contra sistemas opressivos não se dá em torno de quem é ou deixa de ser "gay enrustide", mas na responsabilização de agentes públicos que utilizam o poder para disseminar preconceito e violação de direitos.
Enquanto nos distraímos com especulações, leis como o Estatuto da Família continuam a negar direitos a casais heterodissidentes que são fundamentais, "piadas" homomisíacas em programas continuam a ser naturalizadas e a violência contra a comunidade LGBTQIAPN+ persiste, muitas vezes com o apoio tácito das instituições que deveriam protegê-la.
É reconhecido que existem, em alguns casos, pessoas LGBTQIA+ que negam sua orientação e reagem de forma agressiva, tentando afirmar sua heterossexualidade de maneira violenta. No entanto, reduzir a complexa questão social da homomisia a essa exceção é simplista.
Quando escolas não falam de diversidade, quando igrejas pregam “cura gay”, quando a mídia trata relações homoafetivas como “polêmica”, cria-se um terreno fértil para o ódio — independentemente da orientação de quem o pratica. É essencial que se entenda que a homomisia é um problema estrutural e cultural, não uma questão de sexualidade reprimida ou um traço individual.
Responsabilizar as pessoas homomisíacas por suas atitudes é fundamental para o avanço da luta contra a discriminação e pela promoção de uma sociedade verdadeiramente inclusiva.