Aviso de conteúdo: cissexismo e diadismo.

A recente controvérsia em torno da participação de atletas transgêneros em competições esportivas tem sido permeada por um fervor quase religioso em torno de pretensas evidências científicas. Contudo, um olhar mais atento revela que muitas das alegações contrárias são tanto cientificamente insustentáveis quanto impregnadas de discissexismo* velado.

* Discissexismo (diadismo + cissexismo) refere-se a discriminação contra pessoas que não se encaixam nas categorias normativas de sexo e de gênero, abrangendo tanto pessoas intersexo quanto cisdissidentes.

Primeiro, vamos abordar o cerne da questão: a suposta vantagem desproporcional que atletas transgêneros teriam sobre cisgêneros. A narrativa dominante sugere que a transição hormonal de gênero, especialmente de homem para mulher, confere vantagens físicas injustas devido a fatores como a densidade óssea e muscular remanescente da puberdade.

No entanto, essas afirmações frequentemente ignoram nuances críticas. Por exemplo, Estudos mostram que após um ano de terapia hormonal, mulheres transgênero apresentam uma diminuição significativa nos níveis de testosterona, redução na massa muscular e perda de força comparável às mulheres cisgênero.

Além disso, é importante notar que muitas organizações esportivas exigem que mulheres trans mantenham níveis de testosterona abaixo de um certo limite, que frequentemente é inferior ao permitido para atletas cis — uma regra que, longe de "proteger o esporte", revela um viés arbitrário.

Um exemplo claro pode ser visto na nadadora transgênero Lia Thomas, cuja participação em competições universitárias nos Estados Unidos provocou intensos debates. Embora ela tenha vencido algumas provas, também perdeu muitas outras para suas colegas cis, demonstrando que não há uma superioridade automática apenas por ser uma pessoa trans.

Claro, perder às vezes não prova que não existe vantagem em certos contextos — assim como ume atleta de um país rico pode fracassar nas Olimpíadas, mas ainda se beneficia de um sistema desigual. Mas aí entra outra falha nos argumentos contrários: comparar mulheres trans diretamente com homens cis, como se fossem a mesma coisa. É um salto lógico tão absurdo quanto dizer que, porque homens em geral são mais altos, toda mulher trans seria automaticamente mais alta que as cis. A realidade é mais complexa.

E aqui tem uma contradição que pouca gente comenta: se a "biologia" é tão determinante, por que não há o mesmo alarde quando mulheres cis exigem competir em ligas masculinas? No MMA, no automobilismo, no xadrez, tem mulher cis brigando por espaço em categorias "masculinas". Ninguém chora "injustiça biológica" aí. A diferença? Quando é mulher trans, o problema nunca foi realmente a vantagem, revelando que o cerne da questão não é a vantagem física em si, mas a recusa em reconhecer mulheres trans como mulheres legítimas. O problema, portanto, não é o desempenho, é a identidade.

Mas não é apenas a simplificação científica que desmorona sob análise crítica. Há também a persistência de um discissexismo arraigado. Aquelus que vociferam contra a inclusão de atletas trans muitas vezes partem da premissa de que a experiência de ser cisgênero e perissexo é a única válida ou “natural”. Isso desconsidera a legitimidade e as realidades vividas de pericisdissidentes, reduzindo suas existências a meros incômodos para um sistema binarista que não mais representa a diversidade humana. Essas mesmas pessoas frequentemente ignoram a justiça esportiva em outros contextos e se posicionam contra a inclusão de pessoas cisdissidentes em diversas esferas, como o uso de banheiros públicos, por exemplo.

Outro exemplo é o caso de Laurel Hubbard nas Olimpíadas de Tóquio 2020 ilustra bem a questão: apesar de toda a polêmica em torno de sua participação, ela não conquistou medalha. Se realmente houvesse uma vantagem insuperável para mulheres trans, por que ela não dominou a competição?

O esporte sempre teve desigualdades naturais — de variações genéticas que aumentam a resistência, até treinamentos em altitudes elevadas que geram capacidades excepcionais. Ninguém questiona a presença de atletas com mais hemácias ou jogadores altos sem esforço. Então, por que só mulher trans vira problema? A verdade é que a equidade no esporte é muito mais complexa do que apenas níveis de testosterona.

Certos esportes, como o levantamento de peso, atletismo e natação, parecem estar no centro das discussões. Isso ocorre porque são áreas onde a força e a resistência física desempenham papéis cruciais. No entanto, outros esportes, como tiro com arco, golfe e xadrez, não recebem o mesmo nível de escrutínio, apesar de também terem atletas não-cis competindo. A seletividade dessa indignação revela que os argumentos não são apenas sobre “justiça esportiva”, mas sobre manter o status quo que exclui identidades dissidentes. Embora esportes como xadrez e e-sports também possam sofrer críticas, a intensidade e a frequência são menores.

Pessoas contrárias à inclusão de atletas transgênero clamam por justiça e igualdade, mas muitas vezes baseiam seus argumentos em noções de “pureza” esportiva que são, na verdade, máscaras para preconceitos mais profundos. A insinuação de que mulheres trans não pertencem ao mesmo espaço competitivo que mulheres cis não é apenas uma falácia científica, mas também uma postura moralmente falida.

Além disso, é fundamental reconhecer que as divisões atuais nos esportes são permeadas por perissexismo e cissexismo. Essas divisões não contemplam a diversidade de corpos e identidades além do binarismo, marginalizando tanto pessoas intersexo quanto transgêneros. A questão é complexa e não há soluções simples, mas a busca por maior inclusão e justiça deve buscar reconhecer e integrar essa diversidade, em vez de reforçar estruturas discriminatórias.

Outro ponto relevante é que diferenças de desempenho não são exclusivas da presença de atletas cisdissidentes. Existem muitas outras formas de variação biológica que beneficiam algumes atletas. Por exemplo, pessoas que vivem em altitudes elevadas desenvolvem uma maior capacidade aeróbica devido à adaptação a menores níveis de oxigênio, algo que pode representar uma vantagem em esportes de resistência, como demonstrado em estudos sobre adaptação a altas altitudes. Desigualdades naturais como essa são amplamente aceitas sem gerar os mesmos níveis de indignação, revelando uma seletividade nos argumentos.

No fim, as inconsistências da oposição são tão flagrantes quanto uma maratona com uma única corredora: a linha de chegada já está determinada. Se a intenção é realmente promover um campo de jogo nivelado, é crucial reconhecer e desafiar as estruturas de poder e preconceito que atualmente governam o esporte.

Se a gente realmente quisesse igualdade, estaria discutindo critérios melhores — como níveis hormonais, massa muscular ou performance individual — em vez de gritar "fraude" toda vez que uma mulher trans entra em campo. Porque, na verdade, o que está em jogo não é apenas a integridade das competições, mas a dignidade e os direitos fundamentais de todes es atletas. E isso, adorades opositories, é uma verdade que nenhuma pseudociência poderá refutar.

Escrito por Yvies, ampliado por Aloi,
e publicado em 24 de junho de 2024.