Cisnormatividade e suas contradições
A cisnormatividade e as normas de gênero rígidas operam como uma teia de contradições que, para se sustentar, precisa ignorar qualquer coerência interna. Esse sistema se retroalimenta de lógicas frágeis, ampliando seus próprios impulsos e falhas, criando um ciclo que se autossustenta e, muitas vezes, se intensifica. Isso implica que a violência, por exemplo, não só existe, mas reforça e perpetua o próprio sistema de opressão — como um castelo de cartas: qualquer questionamento mínimo pode derrubar sua aparente solidez.
Um exemplo gritante está na forma como homens gays são tratades. Se ume homem se relaciona afetivamente ou sexualmente com outres homens, a sociedade cisnormativa insiste em reduzi-le a uma caricatura de feminilidade — como se a orientação obrigatoriamente definisse gênero.
Mas aí surge o paradoxo: quando ume homem gay assume publicamente uma identidade de mulher trans, essa mesma sociedade nega sua autodeclaração, usando justificativas que misturam preconceito, pseudociência e moralismo. A mensagem é clara: "Você deve ser tratade como mulher por nós, mas nunca será ume" — um jogo perverso de humilhação que reforça hierarquias de gênero.
Isso não se restringe a homens gays. Qualquer pessoa cuja expressão de gênero seja lida como "afeminada" — sem levar em consideração sua identidade real — é jogada em um limbo de violências. Sofrem a misoginia direcionada a mulheres, como assédio, descredibilização ou agressões, mas, caso ousem reivindicar o lugar de mulher, são imediatamente excluídas do debate. A regra não escrita é: "Você pode sofrer como mulher, mas nunca pertencerá a esse grupo". É como se a sociedade dissesse: "Aceitamos seu sofrimento, mas não sua voz".
Para piorar, há uma exigência perversa de que o sofrimento valide a identidade. Mulheres cis, especialmente as que fogem a padrões de feminilidade, muitas vezes precisam "provar" que são mulheres de verdade — seja através de estereótipos de comportamento, seja pela exposição a violências como assédio ou desigualdade. Mas quando ume homem cis, por exemplo, é alvo de misoginia por ser considerade afeminade, seu sofrimento é tratado como um erro de classificação, não como uma evidência de como o gênero é arbitrário. A misoginia, nesse caso, é reconhecida apenas quando convém, ignorando que ela é um sistema flexível que castiga qualquer um que ouse desafiar as normas — sejam mulheres trans, homens gays, pessoas não-binárias, etc.
Essa dinâmica revela o que poderíamos chamar de "teatro da queermisia". Pessoas afeminadas são chamadas de "mulherzinha" como forma de degradação, mas, se resolvem abraçar o termo e afirmar "Sim, sou mulher", a reação é imediata: invocam-se conceitos distorcidos de biologia ("você não tem útero!") ou dogmas religiosos para invalidá-las.
O objetivo nunca foi definir gênero, mas manter um sistema de exclusão. Se uma pessoa sofre misoginia, mas não se encaixa no "molde" cisgênero e heteronormativo, seu sofrimento é tratado como irrelevante — como se apenas corpos específicos tivessem direito a reconhecimento e, às vezes, nem isso.
No fim, as normas de gênero operam como um mecanismo de apagamento. Elas não só criam hierarquias, mas as atualizam constantemente para garantir que ninguém escape totalmente da marginalização.
Quando alguém diz "Sofro misoginia", a resposta cisnormativa é: "Mas você não é mulher de verdade" — como se a violência sofrida não bastasse para comprovar a realidade de sua experiência. É uma negação dupla: primeiro impõe o sofrimento, depois nega sua legitimidade.
Assim, mantém-se um ciclo onde apenas os corpos e identidades que servem ao status quo têm direito a existir plenamente — enquanto es demais são condenades a um lugar de invisibilidade, onde até sua dor vira instrumento de opressão.