Desmistificando a associação falsa entre pessoas trans e crimes sexuais
Aviso de conteúdo: violência sexual, transmisia, transmisoginia, assédio, agressão física, vigilância de corpos marginalizados e falhas institucionais.
A discussão sobre o acesso de pessoas transgênero a banheiros públicos raramente emerge de preocupações legítimas. Em vez disso, é frequentemente contaminada por uma narrativa perversa: a ideia de que pessoas transfemininas representariam uma ameaça à segurança em espaços segregados por gênero.
Essa retórica, disfarçada de preocupação com a segurança, ignora completamente os dados. Ela expõe uma lógica cissexista e transmisógina que transforma identidades marginalizadas em alvo. Ao invés de proteger, ela reforça um projeto político de controle social, usando a desumanização de corpos cisdissidentes como justificativa para normalizar violências simbólicas e concretas.
A alegação de que pessoas trans usam banheiros como pretexto para crimes sexuais é desmentida por uma pergunta simples: onde estão os dados? Relatórios da Human Rights Campaign, análises do Williams Institute e estudos em estados como Connecticut e Massachusetts — onde leis antidiscriminatórias estão em vigor há anos — confirmam: não há qualquer correlação entre o acesso a banheiros conforme a identidade de gênero e o aumento da violência sexual.
Pelo contrário, as estatísticas revelam um cenário oposto. Segundo a pesquisa U.S. Transgender Survey (2015), realizada pelo National Center for Transgender Equality, 59% das pessoas trans evitaram usar banheiros públicos por medo de confrontos, 12% foram assediadas verbalmente, e 1% relataram agressão física ou sexual nesses espaços (p. 17).
Cerca de 32% relataram que chegaram a limitar a ingestão de alimentos e líquidos para evitar o uso de banheiros, e 8% desenvolveram infecções urinárias ou problemas renais como consequência (p. 17). Esses dados deixam claro que as pessoas trans são, na verdade, as principais vítimas nesses ambientes, e não uma ameaça.
A violência, portanto, não é perpetrada por pessoas trans, mas contra elas. A insistência em inverter essa realidade não é ingenuidade ou desconhecimento, mas uma estratégia política calculada que visa deslegitimar a existência e as reivindicações das pessoas trans, construindo uma imagem delas como ameaça à ordem social.
Essa tática serve para alimentar o medo, justificar políticas de exclusão e repressão, impedir o acesso a direitos básicos como saúde e segurança, reforçar estigmas que perpetuam a violência simbólica e física, e legitimar a vigilância e o controle sobre corpos que desafiam normas tradicionais de gênero.
Ao manipular a percepção pública dessa forma, grupos políticos conservadores mantêm seu poder ao dividir a sociedade, enfraquecer movimentos por igualdade e impedir transformações sociais que questionem as estruturas cisnormativas e patriarcais.
Quando os dados falham ou não são suficientes, o discurso do medo recorre a anomalias, manipulando situações pontuais para criar uma narrativa distorcida. Um exemplo recorrente é o caso de Karen White, uma mulher trans acusada de abuso em uma prisão feminina no Reino Unido em 2018, que é constantemente citado como "prova" de um suposto risco representado por pessoas trans em espaços segregados por gênero.
Contudo, omite-se que White já havia cometido crimes antes de sua transição e que o sistema prisional britânico, notoriamente falho em avaliar riscos reais, permitiu sua transferência sem seguir protocolos de segurança adequados ou realizar uma avaliação completa de risco.
O caso de Karen White não é uma evidência de um "perigo iminente" representado pelas pessoas trans, mas sim uma falha grave do sistema prisional que falhou em garantir a segurança das pessoas, independentemente da identidade de gênero.
Usar um caso tão específico e raro (mesmo que existam outros episódios pontuais semelhantes) para generalizar uma população inteira é não apenas intelectualmente desonesto, mas também perigoso. Eventos desse tipo configuram exceções estatísticas — são outliers, que não refletem a realidade da maioria e não podem servir de base para conclusões generalizadas. É tão absurdo quanto criminalizar todes es homens cis por abusos cometidos por figuras como Harvey Weinstein, como se o comportamento individual fosse uma característica inerente a todo um grupo social.
No entanto, essa lógica seletiva, que permite a generalização de estigmas a partir de exceções, aplica-se quase que exclusivamente a grupos marginalizados, como o das pessoas trans. Essa abordagem não só desconsidera dados confiáveis, mas também alimenta um clima de hostilidade, medo e desinformação, fortalecendo preconceitos injustificados.
A ênfase nas exceções, em detrimento da análise crítica e dos dados concretos, revela o cerne do problema: a desumanização sistemática das pessoas trans. Elas são frequentemente retratadas como potenciais criminosas, uma ameaça constante, enquanto suas experiências como vítimas de violência e discriminação são ignoradas ou minimizadas.
Em contraste, crimes sexuais cometidos por homens cis são frequentemente tratados como falhas individuais, desvios de caráter isolados, sem que se estabeleça um estigma coletivo. Para as pessoas trans, no entanto, qualquer ato isolado é usado como ferramenta para estigmatizar toda a comunidade, reforçando uma visão distorcida e de extrema desconfiança em relação a essas identidades.
Genitálias como espantalhos
A falsa associação entre pessoas trans e violência sexual não é aleatória; é fruto da transmisoginia, que une misoginia e transmisia para atacar mulheres trans. A obsessão com genitálias, alimentada por discursos transmedicalistas, reduz identidades à anatomia, tratando corpos trans como "fraudes" perigosas. Essa lógica ignora que a violência sexual é poder, não biologia. Se órgãos genitais determinassem comportamento, como explicar que quase 99% dos estupradores nos EUA sejam homens, conforme estatísticas do Bureau of Justice Statistics, órgão oficial do Departamento de Justiça dos Estados Unidos?
A resposta é clara: o problema não reside nos corpos, mas em culturas que normalizam a dominação masculina e a objetificação de corpos feminizados. Focar em pessoas trans apenas desvia o debate das verdadeiras causas da violência sexual: patriarcado, impunidade e a cultura do estupro.
Legislar com base em pânico moral não protege ninguém; apenas reforça hierarquias de opressão. Banheiros seguros não surgem da exclusão, mas de políticas que combatam a violência em sua raiz: educação sexual, acesso a denúncias e punição efetiva a agressores. Enquanto isso, a transmisia disfarçada de "preocupação com mulheres" continua a expulsar pessoas trans de espaços públicos, aumentando sua vulnerabilidade.
Desmascarar essa narrativa exige mais do que rebater mentiras: é necessário confrontar a desumanização sistemática que permite que corpos trans sejam vistos como ameaças. A justiça só será possível quando reconhecermos que segurança não se constrói com exclusão, mas com o compromisso radical de respeitar a autodeterminação de todos os corpos. A próxima vez que alguém mencionar "banheiros seguros", lembre-se: o perigo real não está em quem usa o espaço, mas em quem quer decidir quem merece ocupá-lo.