Dizer que nascemos LGBT+ é contraproducente
A ideia de que as pessoas "nascem LGBTQIAPN+" tornou-se uma das principais estratégias discursivas adotadas no enfrentamento às violências cisheteronormativas, especialmente dentro de projetos políticos liberais e assimilacionistas.
A tentativa de naturalizar identidades de gênero e orientações busca legitimar nossas existências ao enquadrá-las como traços biológicos, imutáveis e, portanto, socialmente incontestáveis. No entanto, ao transformar experiências complexas, histórica e culturalmente situadas em características essencializadas e supostamente universais, esse discurso não apenas apaga a dimensão social e política da construção das identidades, como também reforça uma lógica normativa que restringe a própria compreensão da diversidade humana.
Tratar a identidade como algo preexistente, dado desde o nascimento, ignora que tanto gênero quanto sexualidade não são expressões de uma essência interior, mas efeitos produzidos pela repetição de normas sociais. Como argumenta Judith Butler, não se trata de atributos biológicos, nem de uma construção opcional feita por um sujeito autônomo ao longo da vida. Ao contrário, é justamente na reinscrição constante das normas — nas práticas reiterativas que regulam os corpos, os desejos e as expressões — que emergem aquilo que chamamos de "identidade de gênero" ou "sexualidade". São efeitos de discurso, e não manifestações naturais. A própria existência do sujeito é indissociável desses processos normativos: ele não precede a norma, mas é constituído por ela.
As concepções ocidentais e eurocêntricas de gênero e sexualidade — baseadas na ideia de identidades fixas, estáveis e biologicamente determinadas — não são universais. Diversas cosmologias indígenas, africanas e afro-diaspóricas operam a partir de outras lógicas ontológicas, nas quais a organização dos corpos, dos desejos e das relações não se submete às dicotomias binárias impostas pela colonialidade. Isso não significa, porém, uma romantização dessas epistemologias como intrinsicamente "fluídas" ou "livres", mas o reconhecimento de que os regimes normativos são histórica e culturalmente situados — e que aquilo que o ocidente nomeia como "gênero" ou "sexualidade" nem sempre possui equivalência direta nesses contextos. O que está em disputa, portanto, não é apenas o direito de cada pessoa se autodefinir dentro de categorias já postas, mas a possibilidade radical de desestabilizar as próprias categorias, seus critérios de inteligibilidade e os sistemas de poder que as sustentam.
Reconhecer que a identidade não é um dado natural, fixo ou anterior às relações sociais, mas um processo dinâmico e situado, não significa simplesmente celebrar a liberdade individual ou a autenticidade subjetiva. Trata-se, antes, de tensionar os próprios regimes de normatividade que delimitam quem pode ser reconhecido como sujeito, quem é inteligível e quem permanece no campo do inominável, do abjeto ou do impossível. A recusa das categorias fixas não é um gesto de pura afirmação pessoal, mas um movimento político de enfrentamento às tecnologias de controle que regulam corpos, gêneros e desejos. É nesse deslocamento — e não na promessa liberal de autodeterminação — que reside a possibilidade de imaginar outras formas de existência, para além dos limites impostos pela cisheteronorma, pela colonialidade e pela matriz moderna de poder.
Crítica ao Transmedicalismo e Seus Viéses em Pesquisas sobre Gênero
As pesquisas que buscam mapear semelhanças cerebrais entre pessoas trans e cis não são neutras nem inofensivas. Elas operam dentro de um regime epistêmico cisgenerificado, no qual a existência trans só pode ser reconhecida se for validada por marcadores biológicos legíveis conforme os critérios da normatividade científica ocidental. A própria formulação da hipótese — a suposição de que cérebros de pessoas trans seriam mais parecidos com os de pessoas cis do mesmo gênero com o qual se identificam, e não com os cérebros de pessoas do sexo que lhes foi atribuído ao nascer — carrega uma violência ontológica: exige que pessoas trans provem sua legitimidade através da anatomia, da neuroquímica ou da genética, como se sua existência precisasse ser biologicamente justificada para ser socialmente reconhecida. Embora tais estudos pretendam desconstruir a ideia de que o gênero seria uma escolha, um capricho ou uma fraude, na prática apenas reafirmam um modelo reducionista e biologicista, que submete a multiplicidade das experiências de gênero à tirania da materialidade corporal. Nesse enquadre, apaga-se não só a compreensão do gênero como um dispositivo social, histórico e relacional, mas também as violências específicas que esse paradigma biomédico produz sobre corpos trans, racializados e desviantes em geral.
A insistência em vincular identidade de gênero a marcadores biológicos não é apenas uma falha conceitual, mas a reprodução direta de um dispositivo de poder: o biologicismo. Longe de ser uma simples perspectiva teórica equivocada, o biologicismo é uma tecnologia epistemológica profundamente articulada aos projetos coloniais, cisheteronormativos e biomédicos de controle social. Ele opera ao naturalizar relações de poder, transformando efeitos sociais e históricos — como gênero, raça, sexualidade e deficiência — em supostas evidências biológicas, fixas e universais. No campo da identidade de gênero, essa lógica não só falseia a complexidade das experiências trans, como também captura essas existências dentro de um regime ontológico que exige constante validação empírica, científica e normativa. O gênero não é, nunca foi, uma expressão direta da anatomia, da genética ou da neurologia. Ele é um efeito performativo da repetição de normas, das relações de poder e dos discursos que produzem, autorizam e regulam os corpos. A busca por legitimação científica das identidades trans, portanto, não rompe com esse regime — ao contrário, reinscreve corpos trans dentro da grade de inteligibilidade cisnormativa, subordinando sua existência às condições de legibilidade impostas pela ciência ocidental.
A própria existência dessas pesquisas — que buscam validar a transgeneridade a partir de comparações com corpos cis — escancara um dado fundamental: a cisgeneridade é uma construção política que se naturaliza justamente por nunca ser interrogada. Não há correntes científicas mobilizadas para explicar por que pessoas cis se identificam com o gênero que lhes foi imposto no nascimento. Esse silêncio não é um acaso, nem uma omissão inocente. É uma operação ativa do regime cisnormativo, que se autoriza como norma, como evidência autoevidente, enquanto desloca toda a carga da prova, da legitimidade e da inteligibilidade sobre corpos trans. A cisgeneridade, ao se apresentar como transparência ontológica, se preserva através da patologização sistemática de tudo aquilo que a desestabiliza. A busca por validação científica da transgeneridade, portanto, não é um gesto neutro nem progressista: é parte de uma engrenagem que só permite reconhecer vidas trans na medida em que elas se ajustam, se submetem e se provam à lógica cisnormativa. É esse mecanismo que transforma a cisgeneridade em norma universal e a transgeneridade em exceção explicável — ou descartável.
E quanto às pessoas que não são homens nem mulheres?
A exclusão sistemática das identidades não-binárias dessas pesquisas não é um acaso, mas parte de um paradigma biomédico e científico que insiste na manutenção do binarismo de gênero como condição de inteligibilidade. Categorias que fogem ao par masculino/feminino são, assim, silenciadas, invisibilizadas e patologizadas, reafirmando um modelo normativo que não reconhece a pluralidade das formas de existir. Para pessoas não-binárias, a exigência de "provar" ou "justificar" sua identidade através de marcadores biológicos é uma imposição alienante, que reproduz a violência estrutural do cisnormativo. A diversidade de experiências cisdissidentes desafiam radicalmente a pretensão da ciência ocidental de encaixá-las em esquemas fixos e hierarquizados. Reconhecer essa complexidade é essencial para romper com os dispositivos de controle que atravessam as narrativas sobre gênero e legitimar, de fato, todas as formas de existência e autodefinição.
A narrativa transmedicalista não apenas cria uma exigência arbitrária de validação científica para a cisdissidência, como exerce uma violência concreta sobre as vidas dessas pessoas. Quando a legitimidade de uma identidade é condicionada a exames cerebrais ou biomarcadores — cujos "resultados esperados" são estabelecidos por padrões cisheteronormativos —, pessoas trans são submetidas a um regime coercitivo que vulnerabiliza sua existência. Essa pressão institucionalizada não só fragilizaria a autopercepção e o bem-estar emocional, como também legitimaria um modelo de poder que impõe a submissão ao discurso biomédico como única via possível de reconhecimento social. O transmedicalismo, assim, opera como tecnologia de controle biopolítico, negando a diversidade das experiências trans e ampliando as barreiras para sua plena existência e autonomia.
Com isso, a metodologia dessas pesquisas está profundamente atravessada por um viés exorsexista que naturaliza e reforça a divisão binária entre cérebros "masculinos" e "femininos" (termos usados neste contexto, apesar de serem arquétipos relacionados a gêneros binários, mas seus estereótipos acabam indo além destes). Essa categorização simplista não é apenas uma falha técnica, mas parte de um aparato epistemológico que desconsidera a variedade de identidades de gênero, impondo padrões opressivos que reproduzem a cisheteronormatividade. Ao ignorar que o cérebro é moldado por uma complexa intersecção de fatores sociais, culturais e biológicos, essas pesquisas revelam seu completo afastamento da realidade vivida por pessoas trans e não-binárias. O viés exorsexista, ao sustentar e reforçar essa dicotomia, legitima a exclusão daqueles cujas identidades de gênero desafiam os paradigmas tradicionais, perpetuando mecanismos de invisibilização e marginalização estrutural.
A busca incessante por uma fundamentação biológica para a identidade de gênero e a orientação sexual não é apenas redutora — é um campo fértil para práticas de controle social e violências históricas. Ao assumir que a ciência pode ou deve fornecer uma "justificativa" biológica para a diversidade, corremos o risco real de legitimar dispositivos eugenistas, patologizantes e disciplinadores, que já foram usados para justificar desde terapias de conversão até intervenções pré-natais seletivas. Essa busca científica, longe de ser neutra ou emancipatória, está imbricada em projetos coloniais e biomédicos que naturalizam desigualdades e reproduzem sistemas de opressão. Por isso, é imperativo desconfiar e criticar rigorosamente qualquer narrativa que reduza a existência trans e queer a uma explicação biológica, pois tal lógica reforça, sob o verniz da ciência, as mesmas violências que buscamos superar.
Um argumento comum para sustentar a ideia de que a orientação heterodissidente é inata baseia-se na observação de comportamentos sexuais entre animais considerados do mesmo sexo. Embora seja inegável que tais comportamentos tenham sido documentados em diversas espécies, essa comparação ignora a complexidade da cognição humana. Animais não possuem a capacidade de formular conceitos abstratos sobre sexualidade ou identidade da mesma forma que os seres humanos. Por exemplo, gatos machos podem envolver-se em interações sexuais entre si, mas isso geralmente ocorre como parte de comportamentos de dominação ou estabelecimento de hierarquias sociais, e não necessariamente por atração sexual genuína. Utilizar esses comportamentos como justificativa para a heterodissidência é inadequado e redutor, pois desconsidera a profundidade da experiência humana, que resulta de um complexo processo de construção social, cognitiva e cultural.
Desnaturalizar gênero, sexualidade e identidade não é um mero exercício acadêmico — é um gesto profundamente político, que confronta as estruturas de poder que transformam corpos dissidentes em objetos de escrutínio, validação e controle. A insistência em buscar fundamentos biológicos para a existência de pessoas trans, não-binárias e heterodissidentes não é apenas epistemicamente falha; é uma extensão direta dos mesmos dispositivos que historicamente patologizaram, criminalizaram e marginalizaram corpos desviantes da norma cisheterocolonial.
Rejeitar o biologicismo, portanto, não significa negar a materialidade dos corpos, mas recusar a captura dessas existências por narrativas que tentam reduzi-las à função de serem explicáveis, mensuráveis e, portanto, controláveis. As identidades não são fatos da natureza: são produções históricas, políticas e relacionais, continuamente construídas, disputadas e reconfiguradas.
Defender a legitimidade das existências trans, não-binárias e heterodissidentes não pode — e não deve — estar atrelado à necessidade de provar sua autenticidade a partir de critérios biomédicos, neurológicos ou genéticos. Nossa dignidade não reside em sermos percebides como inevitáveis, naturais ou imutáveis. Ela reside no direito inalienável de existir, de se autodefinir e de subverter, se necessário, todas as categorias que o mundo cisheteronormativo, colonial e capitalista tentou nos impor.
O desafio que se coloca não é simplesmente ampliar as fronteiras do que é considerado legítimo dentro do paradigma atual — é, radicalmente, destituir esse paradigma. Destruir as grades de inteligibilidade que tornam alguns corpos possíveis e outros impensáveis. Reafirmar, sem concessões, que nenhuma existência precisa ser justificada. Nenhuma vida precisa ser explicada. Nenhuma identidade precisa ser provada.
Existimos. E isso basta.