Por uma liberdade insubmissa e a revolução queer além da aceitação
A verdade, se me permitem, é que dentro da comunidade LGBTQIAPN+, como em qualquer movimento de resistência, a verdadeira revolução não está apenas nas conquistas visíveis, mas nas rupturas que, por vezes, nem sequer são compreendidas pela massa que se diz revolucionária. A revolução não é só visível nos marcos de direitos conquistados, mas na desconstrução permanente, na escavação da nossa própria subjetividade, nas fissuras de nossas identidades que gritam pelo espaço onde a normatividade di/cis/heterosexista jamais será bem-vinda.
A ironia não está apenas naquelus que falam sobre libertação, mas nunca se perguntam o que realmente é liberdade. O que significa ser livre, senão ser capaz de viver sem a constante vigilância do olhar de outrem, sem a necessidade de se conformar a um molde preexistente? Não somos livres quando nossos corpos e nossos afetos estão à mercê da aceitação alheia, e sim quando tomamos para nós o poder de existir sem pedirmos permissão. Quando quebramos a falsa premissa de que só podemos ser livres dentro das estruturas que o capitalismo, o patriarcado e a colonialidade nos impõem.
A luta cisdissidente, por exemplo, não pode ser reduzida a um processo de transição de um corpo que "passa" em uma estrutura cisnormativa. A transição não é uma transação com a normatividade, não é uma barganha pra aceitação. É um processo de transformação radical e pessoal, onde o corpo e a identidade se entrelaçam, desafiam e transcendem qualquer limitação imposta pela ideia do binarismo. A verdadeira transição é a que nos permite não apenas reconfigurar nosso corpo, mas também reconfigurar nosso entendimento do que é ser humane ou alterumane, de como nos relacionamos com a existência, com es outres, com o mundo.
Porém, essa desconstrução deve ser radical, deve se estender aos próprios mecanismos que, dentro da comunidade, ainda reproduzem as mesmas hierarquias e opressões. A cisnormatividade, o racismo, o classismo e o etarismo não podem ser desafiados apenas na sociedade externa; elus devem ser questionades dentro dos próprios espaços de resistência. Quando aceitamos apenas uma versão de quem somos, que corresponde a um ideal de beleza, de corpo, de afetos, estamos, em última instância, permitindo que as mesmas dinâmicas que nos oprimem se repliquem nas nossas relações interpessoais.
A luta não é por um lugar dentro da mesa cis-heteronormativa. A luta é pela destruição dessa mesa e pela criação de novos espaços, onde possamos existir sem precisar de permissão. Não se trata de garantir um assento em um sistema que nunca quis nossa presença, mas de reconstruir os alicerces do que entendemos como sociedade. Precisamos entender que a aceitação que o sistema nos oferece é uma aceitação condicionada: ele quer que nos adaptemos aos seus valores, não que nos libertemos deles. A verdadeira liberdade começa no momento em que, ao invés de pedir por um lugar à mesa, decidimos que a mesa não nos serve mais.
A política de identidade, então, precisa ser mais do que uma forma de afirmação do eu; ela deve ser uma luta constante contra a uniformização, contra a tentativa de padronização dos corpos e afetos. E enquanto buscamos essa libertação, é fundamental entender que a verdadeira emancipação não se encontra na aceitação do sistema que nos marginaliza, mas na total negação desse sistema. Não queremos mais um lugar dentro da mesa normativa; queremos a destruição da mesa e a construção de novas formas de viver, onde a pluralidade não seja uma exceção, mas a regra.
Essa luta é, portanto, uma luta pela autodeterminação, não só em termos de corpo e identidade, mas em termos de como nos posicionamos frente ao mundo. Não basta apenas sermos aceites no mercado de trabalho, nas instituições, ou até mesmo nas famílias nucleares. A verdadeira vitória será quando não precisarmos mais pedir aprovação para existir, quando formos capazes de romper com todas as formas de alienação e status quo que nos condicionam. Quando, finalmente, poderemos olhar para nosso reflexo e nos enxergar como seres livres, inteires e autêntiques, sem medo do que o mundo pensa sobre isso.
E, no fundo, é aí que reside a verdadeira ironia: a luta pela liberdade não é sobre nos conformarmos com uma versão "aceitável" de quem somos, mas sobre sermos livres o suficiente para romper com todos os sistemas que pretendem nos encerrar. A liberdade não é um prêmio a ser conquistado, mas um estado a ser vivenciado e reinventado a cada respiração.
A luta que travamos, então, é uma luta pela eternidade do agora.