Santas contradições: bíblia como ferramenta de ódio

A Bíblia diz claramente em Mateus 7:1-2: "¹Não julguem, para não serem julgades. ²Pois vocês serão julgades com o julgamento com que julgarem, e serão medides com a medida com que medirem". Portanto, se crentes usam a Bíblia para julgar aquelus que não compartilham de sua fé, aquelus que não são crentes têm o direito de usar a Bíblia para julgar crentes.
Se es crentes citam Levítico 18:22 ("²²Não se deite com ume homem, como se fosse mulher. É abominação."), Levítico 20:13 ("¹³Se ume homem se deitar com outre homem como quem se deita com ume mulher, es dues estarão fazendo algo abominável. Deverão ser mortes, e serão culpades da própria morte."), e Romanos 1:26-27 ("²⁶Por isso Deus es entregou a paixões vergonhas. Sues mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a natureza. ²⁷Da mesma forma, es homens, deixando a relação natural com mulheres, arderam de desejo umes com es outres. Homens com homens praticaram coisas vergonhosas e receberam em si mesmes o pagamento por seu erro."), para atacar pessoas da comunidade LGBTQIAPN+, é justo que usemos Atos 2:44-45 que diz "⁴⁴Todes es que criam estavam juntes e tinham tudo em comum. ⁴⁵Vendiam suas propriedades e bens, e os distribuíam por todes, conforme a necessidade de cada ume." ou Atos 4:32 que diz "³²Da multidão des que creram, uma era a mente e ume o coração. Ninguém considerava exclusivamente sua coisa alguma que possuísse; tudo, porém, lhes era comum." para dizer que, se é para utilizar a Bíblia como um guia moral, que seja então de forma completa e honesta, reconhecendo todas as suas mensagens, ainda mais aquelas que promovem a justiça social e a equidade, e não o ódio.
Existem muitas outras Escrituras que descrevem a prática de vida comunitária, que compartilhavam seus recursos e bens de forma equitativa, que reflete um forte senso de solidariedade e apoio mútuo, onde a prioridade era atender às necessidades de todes, mostrando um modelo de vida onde a generosidade e a preocupação com o bem-estar coletivo eram centrais. No entanto, muitas vezes, citam somente textos bíblicos escritos em contextos históricos, culturais e linguísticos bastante diferentes dos nossos, que são mal interpretados e aplicados de maneira seletiva, enquanto muitas das prescrições da lei de Levítico não são seguidas por cristães modernes (como as leis dietéticas ou as regras sobre vestuário).
A própria Bíblia contém uma rica diversidade de ensinamentos e exemplos de justiça social e igualdade, como em Lucas 6:20-21 ("²⁰Felizes es pobres em espírito, pois delus é o Reino dos céus. ²¹Felizes es que choram, pois serão consolades.") e Tiago 1:27 ("²⁷A religião que Deus, o nosso Pai, aceita como pura e imaculada é esta: cuidar des órfãos e des viúves em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo.").
No entanto, as pessoas citam somente certos versículos para condenar indivíduos LGBTQIAPN+ e ignoram outros preceitos bíblicos que não são seguidos hoje. Por exemplo, as mesmas leis de Levítico que supostamente condenam o relacionamento entre pessoas do mesmo gênero também proíbem o consumo de certos alimentos e a mistura de tecidos (Levítico 11:1-47; Deuteronômio 22:11), normas que a maioria des cristães não segue. Essa aplicação seletiva levanta questões sobre a consistência e a justiça da interpretação.
Muitas teólogues e estudioses contemporânes utilizam abordagens hermenêuticas que consideram o contexto histórico, cultural e linguístico dos textos bíblicos.
O acadêmico bíblico Daniel O. McClellan diz que a tradição antecede o texto bíblico; assim, a interpretação das Escrituras é moldada pela tradição cristã específica a que se pertence, e não apenas pelo texto em si ou pelo seu contexto. Ou seja, a interpretação das Escrituras não é apenas sobre ler o texto, mas também envolve entender como as tradições cristãs moldam nossa compreensão dos ensinamentos bíblicos.
Ele argumenta que a tradição cristã, que inclui interpretações históricas e práticas desenvolvidas ao longo do tempo, muda profundamente como as passagens bíblicas são entendidas e aplicadas hoje. Isso significa que a interpretação não pode ser separada da maneira como as comunidades cristãs praticam sua fé, incorporando seus valores culturais e sociais.
Estudioses modernes apontam que a Bíblia não contém uma condenação universal das relações amorosas entre pessoas do mesmo gênero. Algumes argumentam que versículos como Levítico 18:22, Levítico 20:13 e Romanos 1:26-27 não se referem diretamente à orientação ou identidade de gênero, mas sim a práticas específicas de idolatria e exploração sexual presentes nos contextos culturais e religiosos da época.
Por exemplo, Levítico 18:22, que proíbe ume homem de se deitar com outre homem como se fosse com ume mulher, pode ser interpretado como condenação de rituais pagãos como parte da tentativa de preservar a identidade cultural e religiosa exclusiva de Israel, enfatizando a pureza e a santidade em contraste com práticas pagãs específicas da época que envolviam práticas que es líderes religiosos israelitas consideravam abomináveis, e não como uma regra moral universal sobre sexualidade.
Uma análise mais profunda revela que muitos dos códigos de conduta em Levítico, incluindo os versículos, estavam ligados à distinção entre práticas religiosas israelitas e as de culturas vizinhas. Na época em que Levítico foi escrito, os rituais de fertilidade e sexualidade associados aos cultos cananeus e outros povos pagãos frequentemente envolviam relações sexuais como parte de cerimônias religiosas destinadas a garantir a fertilidade das colheitas e a proteção divina.
Dentro deste contexto, a proibição em Levítico 18:22 pode ser interpretada como uma tentativa de distanciar israelitas dessas práticas religiosas estrangeiras, enfatizando a exclusividade do culto ao Deus de Israel e rejeitando os rituais que consideravam impuros ou inaceitáveis. Essa abordagem interpretativa não visa negar a autoridade das Escrituras, mas sim entender seu propósito original dentro do contexto cultural e religioso em que foram escritas.
A idolatria, especialmente quando combinada com atividades sexuais, era vista como uma grande ameaça à identidade religiosa e cultural de Israel. Tais rituais não apenas desafiavam a pureza religiosa prescrita, mas também representavam uma integração perigosa de costumes estrangeiros que poderiam diluir a fé monoteísta e a coesão social dos israelitas.
Em suma, a problematização dos rituais pagãos na Bíblia pode ser entendida como uma questão de preservação cultural e religiosa da época, sem implicações diretas para a moralidade sexual universal. A leitura contemporânea deve, portanto, considerar o contexto histórico para evitar interpretações equivocadas que promovam a discriminação.
Da mesma forma, Romanos 1:26-27, que descreve homens e mulheres abandonando relações naturais, pode estar criticando práticas ritualísticas ou comportamentos exploratórios que eram comuns em contextos específicos da antiguidade. Na Roma antiga, a sexualidade frequentemente era explorada em contextos de poder e dominação, muitas vezes associada a rituais de cultos pagãos onde a hierarquia social e religiosa refletia padrões patriarcais e de controle. Romanos 1:26-27 pode ser interpretado dentro deste contexto, condenando práticas específicas de exploração e dominação que eram contrárias aos ensinamentos éticos do cristianismo primitivo.
A interpretação desses textos bíblicos deve levar em conta não apenas o contexto histórico e cultural em que foram escritos, mas também que essas passagens não devem ser aplicadas de forma literal e anacrônica, mas sim compreendidas em relação aos valores morais e éticos que pretendiam instaurar em seu tempo. Essas perspectivas desafiam interpretações tradicionais e destacam a complexidade e a diversidade de pensamento dentro do Cristianismo. Portanto, usar a Bíblia para justificar exclusivamente perspectivas discriminatórias contradiz o espírito inclusivo que também é ensinado nas Escrituras. A interpretação das Escrituras não deve ser um exercício de seleção conveniente, mas sim um compromisso com a justiça, a equidade e o amor ae próxime, conforme enfatizado em várias partes da Bíblia.
Além disso, outras passagens bíblicas promovem diretamente a justiça social, igualdade e o acolhimento. Por exemplo, em Mateus 25:35-36, Jesus enfatiza a importância de cuidar das pessoas necessitadas: "³⁵Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram; ³⁶necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram."
E em Gálatas 3:28, Paulo escreve: "²⁸Não há judie nem gregue, escravizade nem livre, homem nem mulher; pois todes são ume em Cristo Jesus." Estes versículos sublinham a igualdade fundamental de todes perante Deus, independentemente de diferenças sociais ou culturais. Essas passagens enfatizam valores de compaixão, inclusão e respeito à dignidade humana, que devem ser centrais na interpretação e prática das Escrituras.
Jesus frequentemente desafiou as normas sociais de sua época, demonstrando compaixão e inclusão para com aquelus que eram marginalizades e oprimides. Em Mateus 25:40, Ele disse: "⁴⁰O que vocês fizerem a algume de mies menores irmães, a mim o fizeram." Este versículo sublinha a importância de tratar todes com dignidade e respeito, especialmente aquelus que são mais vulneráveis ou discriminades.
Além disso, em João 13:34-35, Jesus deu um novo mandamento aes sues discípules: "³⁴Um novo mandamento lhes dou: amem-se umes aes outres. Como eu es amei, vocês devem amar-se umes aes outres. ³⁵Com isso, todes saberão que vocês são minhes discípules, se vocês se amarem umes aes outres." Este mandamento coloca o amor e a aceitação mútua no centro da vida cristã.
A ênfase no amor ao próximo também é evidente nas cartas dos apóstolos. Em 1 João 4:7-8, está escrito: "Amades, amemo-nes umes aes outres, pois o amor procede de Deus. Aquelu que ama é nascide de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor." Esta passagem reflete a convicção de que o verdadeiro conhecimento de Deus se manifesta através do amor incondicional e inclusivo para com todas as pessoas.
Além disso, muitas tradições cristãs modernas estão revisando suas interpretações das Escrituras à luz de novas compreensões sobre orientação e identidade de gênero, bem como um compromisso renovado com a justiça social e a dignidade humana. Igrejas e comunidades de fé ao redor do mundo estão reconhecendo a importância de incluir e celebrar pessoas LGBTQIAPN+ como parte integral da família de Deus. Em suma, a abordagem correta à interpretação bíblica deve ser holística, considerando o contexto original dos textos, a mensagem central de amor e justiça, e a aplicação ética e moral para os dias atuais. Somente assim podemos evitar a manipulação das igrejas das Escrituras para justificar preconceitos e promover uma verdadeira compreensão do cristianismo que é inclusiva e transformadora.
A Bíblia é um texto rico em simbolismos e alegorias, não devendo ser vista como um manual científico ou histórico exato. Uma interpretação literal provoca interpretações distorcidas e injustas de seu propósito original. Ao longo da história, a Bíblia tem sido modificada conforme os interesses de diferentes religiões, muitas vezes usada como ferramenta de controle sobre as pessoas.
Por exemplo, a narrativa de Adão e Eva sugere que ambos não teriam umbigo, já que Eva foi criada a partir de uma costela de Adão — um conceito que não faz sentido biológico. Além disso, o próprio nome "Adão" deriva de Adama, que no hebraico significa "criatura de barro" e não um nome próprio. Isso indica que, na criação, o primeiro humano não possuía gênero, sendo apenas com a criação do segundo que houve a separação. A noção de que o homem foi criado antes da mulher é uma interpretação patriarcal introduzida posteriormente, sobretudo peles romanes, refletindo a ideologia de sua sociedade.
Outro exemplo é a concepção do inferno: Jesus descreveu um "lugar de choro e ranger de dentes", mas a imagem popular do diabo com caldeirão e chifres foi desenvolvida na Idade Média pela Igreja Católica e amplamente usada por algumas denominações evangélicas como forma de controlar as massas. A história real de Jesus é, portanto, muitas vezes obscurecida por essas interpretações e adaptações posteriores. E, acima de tudo, se o seu Deus estruturou o mundo dessa forma, isso diz respeito a você. O meu - ou a ausência deste — não tem qualquer relação com essa narrativa.
Durante movimentos históricos importantes, a Bíblia foi usada tanto para promover igualdade e justiça quanto para justificar discriminação. No abolicionismo, versículos como Gálatas 3:28 foram fundamentais para promover a igualdade e a dignidade humana. Líderes como Martin Luther King Jr. basearam-se em ensinamentos bíblicos para lutar contra a segregação racial nos Estados Unidos, citando passagens como Amós 5:24 ("²⁴Corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro perene."). Ele acreditava que a justiça e a retidão eram princípios centrais não apenas na fé cristã, mas também na luta pela igualdade e pelos direitos civis. Além de Amós, King frequentemente citava outras passagens bíblicas, como o Sermão da Montanha, para defender a não-violência e a justiça social. Ele via a luta pelos direitos civis como uma extensão do compromisso cristão com a justiça, a paz e o amor ae próxime. A Bíblia fornecia a King uma base moral e espiritual para sua visão de uma sociedade justa e igualitária.
Por outro lado, a Bíblia, ao longo da história, foi interpretada de diversas maneiras para justificar práticas que hoje são amplamente consideradas moralmente questionáveis. Um exemplo é o uso de passagens como Efésios 6:5 para apoiar a escravização. Nesse versículo, Paulo instrui escravizades a obedecerem a sues mestres terrenes com respeito e temor, como se estivessem servindo a Cristo. Essa interpretação era baseada na hierarquia social da época, onde es escravizades eram considerades como propriedade e a submissão era considerada uma virtude cristã. Essa passagem, entre outras na Bíblia, foi usada por líderes religioses e governantes para legitimar a escravização como uma instituição aceitável e até mesmo divinamente ordenada.
Para promover um entendimento mais inclusivo e justo, que honre a verdadeira essência dos ensinamentos de Jesus, é crucial lembrar que a Bíblia, como um texto rico em simbolismos e alegorias, não deve ser usada de forma seletiva para justificar preconceitos. A verdadeira mensagem cristã deve focar em valores de compaixão, solidariedade e igualdade, que são repetidamente enfatizados nas Escrituras.
Assim, ao invés de usar a Bíblia como uma ferramenta de opressão, devemos nos inspirar nas passagens que promovem a justiça social e o amor ae próxime. A luta por um mundo mais justo e igualitário está alinhada com muitos dos ensinamentos bíblicos que enfatizam o cuidado com es marginalizades e oprimides. Em um mundo onde as desigualdades persistem, é mais importante do que nunca lembrar e praticar esses princípios de inclusão e justiça.