Travestis precisam usar “a/ela/a”?
A ideia de que toda travesti deve usar exclusivamente o conjunto “a/ela/a” não é uma percepção isolada, mas uma imposição social que expressa uma lógica cisnormativa, colonial e assimilacionista que busca validar a existência travesti a partir da adequação a uma feminilidade hegemônica. Essa exigência é uma tentativa de controlar e disciplinar corpos e linguagens dissidentes por meio de uma normatividade que se apresenta como natural, mas que é, na verdade, parte da colonialidade do gênero.
Em certos espaços que se dizem dissidentes, essa cobrança reproduz mecanismos normativos internos, impondo uma nova norma de gênero que, apesar de se apresentar como emancipatória, é igualmente coercitiva. Ao fixar a linguagem pessoal dentro de um padrão único, desloca-se a discussão da autonomia para a vigilância normativa, restringindo a pluralidade e a diversidade das expressões travestis.
Essa cobrança não é apenas exilinguista, mas também epistemicida. Ignora o fato de que a linguagem não é neutra nem transparente: ela carrega marcas de poder, classe, racialização, regionalidade, capacitismo. A padronização do “a/ela/a” como se fosse universalizável dentro da experiência travesti também impõe uma experiência branca, sudestina, escolarizada, urbana — uma travestilidade inteligível aos olhos do cisgênero liberal, não a multiplicidade concreta das vidas travestis.
Além disso, esse debate raramente aborda o quanto a exigência por coerência entre identidade e linguagem serve ao desejo cisnormativo de controle. Quando uma travesti usa “ele” ou mescla formas neutras, há uma crise de leitura: o cisgênero perde a segurança de onde colocar aquela pessoa na gramática social binária. A reação não é apenas confusão — é repulsa pela quebra de inteligibilidade. Portanto, a cobrança por “a/ela/a” é menos sobre respeito e mais sobre contenção do que escapa ao binarismo.
Travestis não estão em dívida com a gramática cis. A potência de nossas existências está justamente em sabotar a obrigatoriedade da inteligibilidade. O uso de "a/ela/a" é válido como reivindicação histórica e política, mas nunca como norma universal. A linguagem pessoal deve ser entendida como território de experimentação, não como fronteira de pertencimento.
Entenda mais sobre neolinguagem, linguagem pessoal e linguagem genérica neste link.